Cristina de Jesus Botelho Brandão*
Jornalista/Comunicação Social/MI
Neste artigo, pretendo abordar a comemoração enquanto lugar de memória no sentido dado pelo historiador francês Pierre Nora (1993)[1]: lugar onde uma sociedade ancora sua memória.
Para tanto, também utilizo o referencial teórico de Michael Pollak (1992)[2] que explica ser possível encontrarmos lugares de apoio da memória na memória mais pública, isto é, os lugares de comemoração.
Penso a prática comemorativa como um lugar de memória, onde se ancoram sentimentos, lembranças, tradições e o sentido da identidade de um grupo. O passado é comemorado e construído como acontecimento e, nesse processo, misturam-se o presente e o passado. Com a comemoração, materializa-se a memória. Não mais esqueceremos o fato, ele, agora, está marcado em um calendário.
Segundo Pierre Nora, os lugares de memória nascem da consciência de que não há memória espontânea. “A memória é vida, carregada por grupos vivos”, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, em permanente evolução. São lugares com efeito nos três sentidos da palavra - material, simbólico e funcional -: de registros escritos a datas comemorativas, passando por celebrações e símbolos, até museus, bibliotecas, obras de arte.
Já que a memória espontânea não existe, é necessário documentar o presente e relembrar a todo momento o passado. Multiplicam-se os lugares de memória. Os momentos de celebração cristalizam memórias que não podem se perder, sentimentos que intensificam o presente, funcionando como elemento de identificação para todos que participam da prática comemorativa.
Como exemplo de prática comemorativa, destaco, aqui, a celebração do Dia do Índio , no dia 19 de abril, que acontece, no Brasil, desde 1944. Com a criação do Museu do Índio, no Rio de janeiro, por Darcy Ribeiro, em 1953, diversas ações vêm sendo realizadas por esta instituição para festejar a data como danças e cantos indígenas, além de filmes, palestras e eventos educativos para crianças. A programação conta, freqüentemente, com a presença de índios. Aliás, o próprio Museu do Índio foi inaugurado, como parte da Seção de Estudos – SE do antigo Serviço de Proteção aos Índios – SPI, em 19 de abril, em comemoração ao Dia do Índio.
Agora, um breve histórico dessa data. Na década de 30, surgiram as primeiras idéias a respeito de um programa indigenista continental. Somente sete anos mais tarde da VII Conferência Interamericana, no México, e dois anos depois da VIII Conferência Internacional Panamericana, desta vez ocorrida em Lima, Peru, é que , em 1940, o México acolhe o primeiro Congresso Indigenista Interamericano que propôs aos países da América a adoção da data de 19 de abril para o Dia do Índio.
No Brasil isso aconteceu ainda mais tarde. Nosso País cumpriu essa recomendação através do Decreto-lei nº5.540, de 2 de junho de 1943, assinado pelo então Presidente Getúlio Vargas. Em 1944, o País começou a festejar a data com solenidades, atividades educacionais e divulgação da cultura indígena. Desde, então, passou a existir a comemoração do Dia do Índio.
Por ocasião da primeira comemoração, em 19 de abril de 1944, do Dia do Índio no Brasil, o então General Rondon, na sessão realizada pelo Conselho Nacional de Proteção aos Índios – CNPI (anterior à atual Fundação Nacional do Índio), discursou:
Devo dizer igualmente, aos dignos colegas do quanto me tocou a manifestação unânime de todos os jornais desta Capital, em comunhão conosco, no decurso das solenidades em que pregamos toda a vibração do nosso amor. Intimamente, tais manifestações nos sensibilizaram e nos fizeram refletir que o sentimento de nacionalidade domina a orientação social e política do povo brasileiro. O nosso primeiro ensaio repercutirá no espírito público, e me convenço de que firmará prática comemorativa, de salutar reação cívica... (COMISSÃO RONDON, 1946, v.100, p.17) (grifos meus). [3]
Identifica-se, no trecho acima, a preocupação com a organização da memória nacional, estabelecendo relação entre ela e a origem indígena. Hoje, a comemoração do Dia do Índio continua, mas como um lugar de memória que para Nora é onde a memória se cristaliza e se refugia. “A nação não é mais o quadro unitário que encerrava a consciência da coletividade”(NORA, 1993). A celebração do Dia do Índio é um lugar para registrar e lembrar o passado, onde a memória dos primeiros habitantes se cristaliza. Também, atualmente, a imprensa, principalmente a mídia televisiva, celebra a “cobertura” dessa festa, lembrando aos brasileiros a cultura indígena, agora, como fragmento de nossa história, de nossa identidade.
As emissões ao vivo da programação do Dia do Índio fazem parte das comemorações, também, como lugares de memória. São celebrações midiáticas, em forma de narrativas, que colocam em relevo a questão da memória, reatualizando o passado.[4]
Nos próximos anos, poderá não haver mais o Dia do Índio no Museu do Índio. Mas essa comemoração estará presente, certamente, na memória das crianças que, nos anos anteriores, visitaram o museu levadas por suas escolas para festejar o Dia do Índio. E, também, em tantas outras cabeças que viram pelas TVs esse acontecimento. O aprofundamento do assunto acontece na minha pesquisa ”A construção discursiva da comemoração do Dia do Índio no Museu do Índio pela mídia televisiva”. O estudo é uma contribuição ao processo de reflexão sobre a construção da memória nacional.
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[1] NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Proj. História, São Paulo, n.10, p. 7-28, dez., 1993.
2 POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.5, n.10, p.200-212, 1992
3COMISSÃO RONDON. 19 de abril – O Dia do Índio – As comemorações realizadas em 1944 e 1945. Rio de Janeiro, 1946, v.100.
4 BARBOSA, Marialva. Jornalistas, ”senhores da memória”? Trabalho enviado para o NP 02 – Jornalismo, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.
* Formada em Comunicação Social pela Escola de Comunicação da UFRJ / Habilitação: Jornalismo e Mestre em Memória Social pelo PPGMS/UNIRIO. Trabalha na Comunicação Social do Museu do Índio / FUNAI desde 1987. Autora de "A cena do Dia do Índio na TV" (Museu do Índio, 2010).